domingo, 25 de janeiro de 2009

um dia

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pra descansar é tudo o que peço um dia pra acordar e ver a cara do filho dormir sem precisar levantar cantar como é bom cantar sem ter que se preocupar sem ter que acordar pra ver a cara do filho que finge dormir só pra não ter que sentir o cheiro da roupa suada do pai porque sim nem pra ouvir a voz rouca de meu pai eu sentia vontade de levantar da cama e sentia medo e continuava deitado mesmo sendo já tarde eu acordava tarde pra evitar me olhar tanto no espelho não ter que bater tanto na cara não ter que chorar tanto pelo tempo que passava voando e eu ali parado num quarto escuro farejando comida e se eu parecia quieto demais esse silêncio só mascarava segredos de uma vida tão medíocre que mereceria ser vivida eternamente assim como nair mãe de meu filho morreria pior pior eu acordei mais tarde ainda com dor de cabeça e uma preguiça de levantar quando ouvi um barulho uma pancada é pancada vinda do banheiro mas tão discreta que passaria por qualquer outro menos a mim porque tenho um coração meio ciumento e tive então a certeza de que havia mais alguém lá porque nair mãe de meu filho era uma sonsa que nunca me enganou mas estava sozinha como sempre silenciosa como sempre me faz calar a boca e me arrepender de falar tantas injúrias porque faz tanto tempo que às vezes duvido mesmo se ouvi aquilo e ela hoje parece uma santa sonsa mas acho que não teve barulho não isso é coisa aqui da cabeça de um velho que vive trabalhando de sol a sol sem reclamar de nada talvez eu só quisesse ter ouvido a pancada pra a minha vida fazer mais sentido a gente quer muita coisa na vida espera sempre que o dia de amanhã seja melhor e que a chuva chegue logo porque o gado não aguenta muito tempo mas um diazinho de folga é tudo o que peço não peço mais nada não quero mais nada talvez um copo d'água por favor como faz calor obrigado mas e o dia hein o dia que peço é pra ficar em casa e o senhor nem vai sentir a minha falta porque um dia é curto demais eu logo volto feliz por ter estado em casa o senhor não sabe como essas poucas horas são importantes talvez mudem a minha vida talvez salvem do inferno um miserável que detestava o próprio pai você acredita que eu não conseguia olhar na cara dele ou puxar uma conversa sem tremer e que vontade tem a gente numa hora dessas da vida ao ver tanta besteira que fizemos de querer voltar atrás e fazer diferente porque agora parece simples um abraço é simples um aperto de mão assim como o pedido de desculpas e com ele rir da vida porque a vida é simples pra quem quer e se eu não tivesse perdido tanto tempo deitado naquela cama velha essa conversa seria tão desnecessária quanto essa lágrima que cai você pergunta e eu digo que ela cai porque sim eu odiava o meu pai e me arrependo porque que mal faz um pai só por ser pai ser ausente sem dia para saudades nem comemorações mas verdade que não tínhamos muito o que comemorar porque nair desapareceu logo depois que resolví voltar pra casa e o dia que peço meu senhor é justamente pra conseguir voltar porque até agora não cumpri minha promessa quero sonhar com um dia melhor me perder em lembranças ao longo das horas sem me preocupar mais com a família se precisa ou não de mim se lembra ou não do meu rosto que já mudou tanto por já estar tarde e nem sinal de um sim pra o meu pedido mas eu tenho esperanças sou trabalhador nunca faltei um dia nunca cheguei atrasado nunca reclamei dessa porcaria de salário nunca me defendi dos insultos ou da exploração nunca lutei pelo que realmente mereci e quando me pediram os nomes dos baderneiros eu entreguei todos porque a minha fome era maior e como sofro aqui como trabalho nesse trabalho inútil que nunca dá sinal de prosperidade como me arrependo de ter saído de casa olha só o que consegui juntar nesses anos todos fraturas ferimentos e ameaças sem fim pareço inofensivo demais para abutres tão acostumados com a carniça humana e se é de direito seu que um preto apanhe tanto aqui estão as minhas costas já que nunca pedi por respeito nem coisa alguma além desse maldito dia que eu usaria pra sumir daqui e ir pra bem longe com o meu filho mas não vou mais não quero mais nada de você amanhã estarei aqui às seis da manhã com a cara dura esquecerei de que preciso cuidar do meu filho abandonado para estar aqui como sempre


David Oliveira

2 comentários:

  1. Muito honesto seu texto, David.
    Eu gostei muito dessa honestidade e simplicidade que permeiam não só o texto, mas o personagem também.
    Muito bom!

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  2. David, honestamente, um dos melhores textos que eu li assim, em blogger. O fato de vc ter desencadeado os fatos de uma forma assim tão intensa potencializa a dramaticidade do texto, dá uma certa velocidade. De vez em quando, uma vírgula seria bom pra diferenciar algumas sentenças. Acho que ele teria essa mesma velocidade se ele não tivesse só ponto. Mas, de qualquer forma, ficou ótimo assim mesmo. A temática é ótima. Uma verdade oculta, que eu acho que todo mundo viveu um dia. Eu num digo ódio pelo pai, isso, pelo menos eu, não vivi. Mas o preferir fingir dormir a ter que encarar a realidade. Eu coloco isso em meus textos, isso é um pouco de mim. Ler seu texto faz parecer estar lendo um depoimento. Não sei, e isso não me diz respeito (tudo que eu falo é literariamente), parece que seu texto é seu relato. E isso é ótimo para o texto, porque o torna verossímel, crível. Faz eu lê-lo numa perspectiva diferente. E mais ainda porque a velocidade que você impõe ao texto parece que é um grande desabafo, como se tudo tivesse sido escrito de uma vez só, até a mão se cansar de escrever. Excelente texto!
    Parabéns!

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