domingo, 11 de janeiro de 2009


O Ralo

Despejava no chão as gotas que lhe sobravam ainda na taça. E o vinho derramado respingava em suas sandálias douradas, banhando os pés que tão vaidosamente tratara antes do jantar. Cada gota ao chão latejava-lhe como uma marretada em sua cabeça. Exagerara um pouco no vinho. A dor de cabeça estava lhe consumindo a alma. O pensar já vagueava longe, distraído da conversa que tanto empolgava o marido. Ah, o marido...
-Lembra-se, querida, quando estivemos na Europa? Não suportávamos o frio!
Seu olhar distante denunciava seu total desinteresse pela conversa à mesa.
-Querida?!
Aquela voz arrastada que insistia em lhe acordar todas as manhãs com um “Bom Dia” já lhe soava tão falsamente natural. Como não suportava mais ser acordada àquela maneira. Como a irritava o jeito lento e atrasado de falar de Carlos. Como não suportava mais Carlos...
-Com licença, vou ao toalete!
-Te acompanho, Renata. Preciso retocar a maquiagem. –Arriscou Vânia, numa tentativa de ficar a sós com a amiga e lhe interrogar o que a afligia.
-Preciso ir só, Vânia. Já me basta a falta de espaço dessa mesa.
Todos que conversavam empolgadamente calaram-se, como que obedecendo a uma ordem silenciosa. Mesmo Carlos, que sorria enquanto tentava disfarçar a distância com que sua mulher o tratara, cala-se esperando o desfecho da atitude de Renata. Há algum tempo sentia-a infeliz, introspectiva.
“Deve ser a menor-pausa.” Consola-se. Sendo ou não, o fato é que sua mulher não era mais a mesma. E aquele jantar era apenas uma tentativa de animá-la um pouco. Mas o vinho fora seu único companheiro durante toda a angustiante noite. Todos à mesa sentiam o ar carregado, denso. O tempo teimava em arrastar-se e Renata só era notada quando erguia o braço ao garçom, exigindo -aos berros- mais bebida. Ou mesmo quando, entre resmungos, enigmaticamente falava pra si mesma que estaria desapontando sua filha. Mas que filha? O maior lamento de Carlos era ser estéreo. Filhos era apenas um sonho distante. Adotá-los não. Filho tem de ser de sangue. Esses os únicos dignos de herdarem a fortuna que conquistara com tanto suor e trabalho. E deveria ser com Renata. Ela era a mulher ideal. A criança herdaria sua sensibilidade e altivez. Quem sabe até seria inteligente como a mãe. Dele bastava apenas que herdasse... Bom, bastava apenas amá-lo. Já era o suficiente.
Mas e por que agora essa atitude de Renata? Que filha, meu Deus?
No espelho do toalete, Renata via a maquiagem desmanchar-se em pretas lágrimas. E essa angústia que lhe consumia toda a alma, toda a existência?
-Meus Deus, e minha filha, o que será dela?
E soluçava como uma criança que acabara de sofrer um corte.
Carlos achou por bem ir embora. O vexame já daria o que falar a semana inteira.
Não falaram nada no carro enquanto retornavam a sua casa. Ela fazia-se de sonolenta, mas só ela e Deus sabiam o quanto estava agitada por dentro... E sua filha... Então um sorriso é esboçado quase que naturalmente, como se viesse de dentro o impulso de simplesmente sorrir.
Quando deitados, Carlos virara-se para o lado. Era preferível fingir dormir a ter que ouvir as asneiras de uma bêbada angustiada. E aquela angústia toda, como se explica? Ela levanta para ir ao banheiro. Olha-se no espelho. Não aceita que, num momento de fraqueza, pudera ter cedido à latência da carne que lhe suplicara outro homem. Justo Sabino, o chefe de Carlos. Maldito dia em que ele o procurara em sua casa. E o seu homem tinha justamente que ter ido ao bar com os amigos? Pior era esse homem à sua frente que inspirava virilidade, que exalava selvageria. Como uma leviana, entregara-se aos prazeres da carne. Ele que se insinuava tantas fossem as vezes que ela precisasse ir ao escritório do marido para uma passagem ligeira. Nunca na frente de Carlos, ao menos nisso era discreto. Fora apenas uma vez.
-Uma vez, meu Deus? E como? Não é justo!
Bem que fora prazeroso. Jamais o seu homem, fora tão incisivo, tão viril. Nem mesmo quando se entregaram um ao outro da primeira vez. E o incômodo que não vinha? Dois meses e 3 dias.
Num acesso de fúria e inconseqüência esmurra a barriga como quem está disposta a matar de tanto bater. E era isso que intentava. Matar a filha. Tinha certeza que era uma menina. Sempre fora seu sonho. Sempre sonhara em poder vê-la crescer. E casara-se justo com um homem que nem ao menos orgulha sua espécie. Nem ao menos pode perpetuar-se.
E os murros são cada vez mais violentos. Fora preciso morder uma toalha para abafar os gemidos de dor. A essa altura Carlos dormia. E ela sofria no banheiro.
Ela então, desmaiada, fora acordada por Carlos, que a deitara na banheira sem água.
As lágrimas do marido escorriam concomitantemente com o sangue que escorria nas pernas de Renata, acrescida de uma intensa dor que lhe comprimia o ventre. E, na banheira sem água, pôde ver os resquícios de um sonho esvair-se com o sangue que descia pelo ralo.

6 comentários:

  1. Muito bom o texto!=)

    Parabéns!

    Bjao!

    =***

    ResponderExcluir
  2. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  3. Vida pelo ralo.
    Allan, por que será que dizem que vermelho é vida então?
    Se pelo vermelho que a vida se foi...
    ou talvez é porque enquanto o sangue é vermelho é que se vive.
    Acho que não só o sangue, mas também coração, lábios, olhos e alma.

    =D

    ResponderExcluir
  4. Sufocante e rítmico como eu tanto gosto.
    Obrigado pelo texto.

    ResponderExcluir
  5. caara, eu consgui sentir a angústia da Renata!
    e é isso que faz um texto ser bom, esse compartilhamento de emoções!
    parabéns, Ratts!
    ;D

    ResponderExcluir
  6. Cara, que bom sentir a receptividade de vcs, eu sou muito inseguro e é bom ver que alguém gostou!
    Luana, eu acho que o vermelho representa vida, ele em si mesmo é bastante forte, como a vida, como a morte, que também é extremamente latente, mesmo viva. São os opostos que são igualmente fortes. O bem é tao forte quanto o mal. O sangue lembra paixão, mas em alguns momentos lembra assassinato, morte. É a força cromática, talvez.

    ResponderExcluir