quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

O que foi, homem?

Intensificou-se de júbilo logo pela manhã. Tinha vontade de rir, estava alegre. Afinal, a vida não era tão covarde com ele. Como compensar isso? De que forma agradecer? Questionava-se, mas não se contaminava com a euforia de obter uma resposta. Isso era o de menos, só queria comemorar e brindar a vida. Seria espontâneo? Ainda não sabia.

Não havia nada que iria detê-lo, mesmo a intensa felicidade que ofuscava a perversidade da sociedade, de ir ao trabalho. Seu labor era humilde, não tirava muito com aquilo não. Quem ajudava muito com a criação dos meninos e as despesas da casa era o seu irmão doutor. Ele só vendia batatinha numa esquina movimentada do centro da cidade. Ocupava-se, como sugeria a mulher, empurrava com a barriga, até a velhice chegar um dia e confortá-lo de alguma maneira, isso já era o que ele pensava, a mulher reclamava que nada ia melhorar, que ia passar o resto da vida daquele jeito, penoso e miserável, dependendo de favores de pessoas que sentia não conhecer.

Ele tinha seus motivos para estar alegre e ir para seu trabalho sossegado, de alma lavada. Os meninos iam bem no colégio, com certeza iam ter um futuro como o do irmão que já garantira ajudar a colocá-los numa boa universidade. Isso lhe encheu de algo inefável, contaminador.

Na rua, perceberam facilmente essa felicidade anormal e indescritível por ser diferente, exacerbada.

- O que foi homem? Passou no bar, foi?

Nem respondeu. Quando percebeu já estava esquentando o óleo, logo as pessoas chegariam interessadas em algo crocante, seco, quente e delicioso. Ele daria o melhor de si. Aquele dia era diferente, merecia. Ele não queria dinheiro, claro que queria. Não queria era entrar num ritmo onde as pessoas, muitas pessoas, acabavam tendo de comer batatas-fritas não muito boas só porque tinha de atender a todos na intenção de faturar muito no dia. Cansara disso. Queria, agora, caprichar no serviço, ser menos atabalhoado, atender as pessoas da maneira que mereciam, nem que para isso seu lucro fosse reduzido pela metade. Estava decidido. Era assim que iria compensar a alegria de ver as coisas dando certo.

Decidido, começou a exercer seu ofício com maestria. Uma moça acompanhada de um menino adentrando na puberdade vinha de longe e ele sabia o que queriam, já era experiente. Os primeiros do dia, do ótimo dia. Presenteá-los-ia. Faria sua melhor performance, irão comer da melhor batata-frita da cidade. Soava como tolice, mas era o que queria. Abriu o sorriso quando a moça dirigiu-lhe o olhar:

- Me dê uma, por favor. Disse ela já tirando as moedas da carteira.

- Uma batata-frita, viu? Ajudou o menino, julgando que a irmã não tinha sido muito clara.

- Tá na mão.

E estava. Não demorou e obteve as moedas da moça e um singelo "obrigado". Eles deviam não saber, mas o homem tinha se esforçado para compor aquele tira-gosto, se esforçado para fazer o melhor, assim como um nadador olímpico o faz para obter um novo recorde, assim como uma bailarina o faz para executar perfeitamente sua dança, assim como um chef o faz para agradar convidados reais, assim como um músico o faz para realizar uma sinfonia perfeita. De certo, tinha realizado algo que, para ele, beirava a obra-prima.

Notou que seu desempenho não fora notado, mas não reagiu negativamente. Lembrou o motivo que o fizera buscar essa perfeição, a compensação da felicidade, e energizou-se novamente daquele júbilo não tão inexplicável agora. Alguém havia de notar, continuaria assim. Se isso não ocorresse, paciência! Queria colocar um ditado agora, mas nunca os dominara bem, a mulher sim fala de ditados muito bem, mas ele...


*


Mais tarde.

- Mana, cê memorizou onde fica aquela esquina da batata daquele cara?

- Acho que sim, por quê? É boa a batata dele?

- Excelente! Lembrar de quando estiver por aqui voltar lá. Foi, sem dúvida, a melhor batata-frita que eu já comi.

domingo, 25 de janeiro de 2009

um dia

.
.
.
pra descansar é tudo o que peço um dia pra acordar e ver a cara do filho dormir sem precisar levantar cantar como é bom cantar sem ter que se preocupar sem ter que acordar pra ver a cara do filho que finge dormir só pra não ter que sentir o cheiro da roupa suada do pai porque sim nem pra ouvir a voz rouca de meu pai eu sentia vontade de levantar da cama e sentia medo e continuava deitado mesmo sendo já tarde eu acordava tarde pra evitar me olhar tanto no espelho não ter que bater tanto na cara não ter que chorar tanto pelo tempo que passava voando e eu ali parado num quarto escuro farejando comida e se eu parecia quieto demais esse silêncio só mascarava segredos de uma vida tão medíocre que mereceria ser vivida eternamente assim como nair mãe de meu filho morreria pior pior eu acordei mais tarde ainda com dor de cabeça e uma preguiça de levantar quando ouvi um barulho uma pancada é pancada vinda do banheiro mas tão discreta que passaria por qualquer outro menos a mim porque tenho um coração meio ciumento e tive então a certeza de que havia mais alguém lá porque nair mãe de meu filho era uma sonsa que nunca me enganou mas estava sozinha como sempre silenciosa como sempre me faz calar a boca e me arrepender de falar tantas injúrias porque faz tanto tempo que às vezes duvido mesmo se ouvi aquilo e ela hoje parece uma santa sonsa mas acho que não teve barulho não isso é coisa aqui da cabeça de um velho que vive trabalhando de sol a sol sem reclamar de nada talvez eu só quisesse ter ouvido a pancada pra a minha vida fazer mais sentido a gente quer muita coisa na vida espera sempre que o dia de amanhã seja melhor e que a chuva chegue logo porque o gado não aguenta muito tempo mas um diazinho de folga é tudo o que peço não peço mais nada não quero mais nada talvez um copo d'água por favor como faz calor obrigado mas e o dia hein o dia que peço é pra ficar em casa e o senhor nem vai sentir a minha falta porque um dia é curto demais eu logo volto feliz por ter estado em casa o senhor não sabe como essas poucas horas são importantes talvez mudem a minha vida talvez salvem do inferno um miserável que detestava o próprio pai você acredita que eu não conseguia olhar na cara dele ou puxar uma conversa sem tremer e que vontade tem a gente numa hora dessas da vida ao ver tanta besteira que fizemos de querer voltar atrás e fazer diferente porque agora parece simples um abraço é simples um aperto de mão assim como o pedido de desculpas e com ele rir da vida porque a vida é simples pra quem quer e se eu não tivesse perdido tanto tempo deitado naquela cama velha essa conversa seria tão desnecessária quanto essa lágrima que cai você pergunta e eu digo que ela cai porque sim eu odiava o meu pai e me arrependo porque que mal faz um pai só por ser pai ser ausente sem dia para saudades nem comemorações mas verdade que não tínhamos muito o que comemorar porque nair desapareceu logo depois que resolví voltar pra casa e o dia que peço meu senhor é justamente pra conseguir voltar porque até agora não cumpri minha promessa quero sonhar com um dia melhor me perder em lembranças ao longo das horas sem me preocupar mais com a família se precisa ou não de mim se lembra ou não do meu rosto que já mudou tanto por já estar tarde e nem sinal de um sim pra o meu pedido mas eu tenho esperanças sou trabalhador nunca faltei um dia nunca cheguei atrasado nunca reclamei dessa porcaria de salário nunca me defendi dos insultos ou da exploração nunca lutei pelo que realmente mereci e quando me pediram os nomes dos baderneiros eu entreguei todos porque a minha fome era maior e como sofro aqui como trabalho nesse trabalho inútil que nunca dá sinal de prosperidade como me arrependo de ter saído de casa olha só o que consegui juntar nesses anos todos fraturas ferimentos e ameaças sem fim pareço inofensivo demais para abutres tão acostumados com a carniça humana e se é de direito seu que um preto apanhe tanto aqui estão as minhas costas já que nunca pedi por respeito nem coisa alguma além desse maldito dia que eu usaria pra sumir daqui e ir pra bem longe com o meu filho mas não vou mais não quero mais nada de você amanhã estarei aqui às seis da manhã com a cara dura esquecerei de que preciso cuidar do meu filho abandonado para estar aqui como sempre


David Oliveira

Navegações

Navegante da minha alma
Ancora tua nau em destino certo
Que o meu é desvairar

Navegante acostumado com águas revoltas
Não se conforma com as águas calmas
da vida que lhe é ofertada
Naufrago da vida

Navegante do seu mundo
Sua vida me mata
E a cada morte renasço
Para mim ou pra os outros?
Em um conhecimento de mim mesma

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Segunda de manhã, ainda de camisola, olho-me no espelho e vejo-a. Está sorrindo e imitando meus gestos. Lá está uma garotinha, gordinha, bochechuda e com um sorriso no rosto, a fitar-me.
Olho espantada o espelho procurando respostas, mas a imagem apenas sorri. Tento tocá-la e ao encostar sua mãozinha na minha, sinto apenas o frio do espelho. Ficamos paradas, as duas, observando-nos. Eu, emocionada pelo passado, pela criança que fui. Ela, admirada, com a pessoa a qual se tornará daqui a dez anos.
Não recordava-me de ser tão inocente, tão pura, tão singela. Quem dera guardar isso tudo eternamente comigo!
Mesmo caladas, entendemo-nos. Eu, querendo entrar no mundo do espelho e tomar o seu lugar, que um dia fora o meu; quando tudo era fácil, simples e a maior dor sentida era apenas de arranhões causados pelas brincadeiras. Ela, querendo sair e substituir-me, querendo crescer, ter direitos, vontades próprias. Tenho vontade de falhar-lhe dos problemas, mágoas e tristezas do crescimento. Onde arranhões fazem apenas cócegas e carinho no coração. Mas para que destruir-lhe o sonho? A esperança? Para que roubar-lhe a inocência que há muito perdi?
Deixei-a assim, na ignorância do que é dor. Para que aprender certos conceitos agora? Que Deus a conserve livre de tudo e de todos! Talvez vendo o peso de mais dez anos, percorra um caminho diferente e tenha outra imagem; mais alegre, mais viva. É, talvez. Talvez daqui a dez anos eu descubra.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A Bicicleta Universitária

O chão estava numa tonalidade arroxeada que se confundia com vermelho. Os alunos pisavam sem nem sentir o que aquela cor lhes trazia, ficavam embaixo do jambeiro, responsável pela mudança periódica de coloração, a conversar o que só eles entendiam, fazendo com que os outros alunos os taxassem de pedantes ou outras coisas do gênero. Mas não era nada disso.

Robaldo era um dos alunos do curso de Física daquela universidade, os que ficavam embaixo do jambeiro, e era ciente do que pensavam os outros alunos. Ele sabia pelas expressões faciais que via e pelas meias palavras que escutava, era esperto, vaidoso e não queria ter sua imagem distorcida. Mas o que fazer?

O campus amplo e arborizado comportava centenas de alunos. Muitas salas, tantas que era fácil deparar-se com uma nova todo dia. Essa disposição agrupava naturalmente os alunos por curso, uma vez que cada departamento era um pouco longe um do outro. Todos compartilhavam somente a área de lazer e alimentação, um enorme pátio com mesas e cadeiras distribuídas aleatoriamente pelo espaço, com quiosques e com o jambeiro, aquele jambeiro onde se encontravam sempre os alunos de Física da turma de Robaldo:

- Já pararam para pensar o que essas pessoas pensam da gente? Indagou Robaldo.

- Que somos doidos, respondeu Jorge sem emoção.

- Deve ser, finalizou Robaldo quase num sussurro.

O restante ouviu o questionamento do colega, mas não esboçou reação nenhuma, para eles não era um ponto conflitante, mas para Robaldo...

Foi para casa com aquilo em mente. Não era ele um louco. Por que aquelas pessoas poderiam pensar isso? Não fazia idéia. Decidiu se esforçar para saber e, se a confissão do amigo vingasse, para desfazer essa impressão. Não sabia como, mas tinha disposição para isso.

No outro dia, vigilante, ficava esperando algum comentário alheio a cerca dele e de seus colegas. Nada ainda, imaginava que não ia demorar muito. Até que a conversa desinteressada de dois rapazes chegou aos ouvidos de Robaldo.

- Esse povo da Física não tem juízo não, é tudo doido. Bradou um.

- É, né? Perguntou num tom dúbio de concordância o outro.

- Eu nem me espanto mais...

- Por quê? Sem hesitar, interrompeu Robaldo.

- Como? Perguntaram os dois de forma atordoada.

- Por que você acha isso?

- Você é da Física, né? Tá vendo, tudo doido, afirmou e continuou andando com o amigo. Mais ao longe riram prolongadamente.

Robaldo não suportava ver a confirmação do que dissera o amigo. Então é verdade! O episódio não o incentivou a aproximar-se de outras pessoas, já não era mais uma hipótese.

Duas semanas se passaram e ninguém sabia nada de Robaldo, incomunicável, ausente. Seu paradeiro, uma incógnita. Até que Jorge e os amigos, no local de costume, embaixo do jambeiro, viram uma pessoa aproximar-se com uma bicicleta e notaram algo familiar:

- Robaldo, é você? Questionou um de seus amigos

- Sim. Eu estou tão mudado assim?

- Tá, cara, disse assustado Jorge. O que houve? Faz uma semana que ninguém te vê. Por onde você andava?

- Por aí, é que eu sou louco mesmo. Olhem, deixe-me apresentar, a Marie, minha bicicleta.

O cabelo ao vento, a barba mal feita e as roupas frouxas e desbotadas não inspiraram confiança, todos faziam caras que só aumentaram com a recepção da bicicleta.

- Oi, Marie. Em homenagem à Marie Curie?

- Sim, sim. Confirmou Robaldo. Eu vim, na verdade, pegar umas assinaturas para pôr nessa bandeira, tirou da bolsa de viagem que carregava um pedaço de pano médio e balançou no ar para que todos pudessem ver. Eu vou seguir uma jornada com a Marie, em nome da Física.

- Que jornada?

- Um percurso equivalente ao comprimento da linha do equador, mais de quarenta mil quilômetros. Eu me resignei pra isso, não se preocupem, só assinem que eu ainda vou colher assinaturas de outras pessoas também.

Não havia muito que dizer. Apesar de ser uma idéia difícil de dar crédito, ele parecia saber o que fazia. Rapidamente, a bandeira mudou do branco para a cor das várias assinaturas das pessoas da universidade, que estavam todas reunidas, assistindo a cena.

Robaldo hasteou a bandeira na bicicleta, saiu pedalando e já contabilizando os quilômetros. Era fácil ouvir "Que maluco", "Palhaçada" ou, até mesmo, "Deus abençoe".

- Ele conseguiu o que não queria: ser taxado como louco. Lamentou Jorge no final do alvoroço.

As dores vieram rapidamente, assim como o arrependimento. Que idéia! Ele não tinha os requisitos para aquilo: pedalar e pedalar e pedalar. Numa rodovia de caminhoneiros, não muito longe da cidade, Robaldo percebera que sua idéia não faria Arquimedes abandonar seu banho e sair gritando "Eureka" despido por aí. Era uma decepção. Achava que podia fazer aquilo para se reinventar e conseguir a admiração de alguns, mas estava longe disso, será que não percebia?

Percebeu na hora em que estava controlando o guidão da bicicleta com a bandeira, cansado, sujo, desejoso de estar em casa. As pessoas perguntavam:

- O que é isso rapaz?

Ele pensava... Não sabia a resposta especificamente. "Em nome da Física". Não era isso. Queria responder a outra pergunta: O que te traz aqui? Essa sim ele responderia facilmente, mas como o questionamento era outro, improvisava dizendo asneiras ou fazendo-se de mudo. Até que tirava algum divertimento daquela patacoada. Para diferentes ouvintes enunciava diferentes causas, tudo por puro divertimento, anestesiava-se da grande decepção que fora sua idéia.

A decepção, entretanto, aumentava tanto quanto sua magreza. Precisava fazer outro furo no cinto, as calças caíam. Sentia seu rosto mais ossudo, fazia tempo que não via seu reflexo. Sentia-se envergonhado e humilhado. Pensou na universidade e nas pessoas que o consideravam louco, na família distante, pensou na vida.

Com nem um quarto do percurso proposto concluído, ele largou a bicicleta e sentou-se no meio-fio. As lágrimas facilmente caíram e secaram. Ficou irado, rasgou a bandeira e com um pedaço de ferro que encontrou perdido na mata rasteira daquela rodovia golpeou a bicicleta, ou como denominara: a Marie Curie. Não tinha saciado nada com o ato, até se entristecera mais.

Cansado, começou a andar numa direção. Tinha a estranha sensação de que não andava, o asfalto é que empurrava seus pés, assim, ia adiante. Que espécie de experiência foi essa? Iria para casa na primeira oportunidade que aparecesse. O braço erguido e o polegar sinalizavam o pedido de carona que muitos ignoravam, não era costume dar caronas. Tinha um resto de comida e uma barraca na mochila, dava para passar a noite ali na companhia do medo, da solidão e do remorso. Faltava localizar um lugar adequado.

Ainda sinalizando carona, continuou andando até que avistou o lugar perfeito. Uma pungida alegria o contaminou, dando forças para que ele corresse e chegasse ao local que julgava apropriado. Sentou ofegante e sentiu-se revitalizado e com a coisa certa a fazer em mente.

Deitou na folhagem de tonalidade arroxeada que se confundia com vermelho e avistou a copa de cor verde com pontos vermelhos, a copa do jambeiro. Armou a barraca, comeu e dormiu. Já sabia o que fazer.


terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Rosa,mar e nuvens


Poderia ter corrido não corri

Poderia ter andado mais devagar, não andei

Queria ter gritado minha dor

Mas guardei-a só para mim, egoísta que eu sou


Minha vida foi buscar a completude

Apesar de sabê-la impossível

Na verdade, achando-a

Mas perdendo em seguida

Pois mantê-la seria um crime

Contra mim

Contra minha vida

Contra o sentido


Minha vida é baseada na completude existente na incompletude

Na nostalgia do que foi

Na saudade do não vivido

No amor cultivado

no ódio retraído

E isso me faz humano?

domingo, 11 de janeiro de 2009


O Ralo

Despejava no chão as gotas que lhe sobravam ainda na taça. E o vinho derramado respingava em suas sandálias douradas, banhando os pés que tão vaidosamente tratara antes do jantar. Cada gota ao chão latejava-lhe como uma marretada em sua cabeça. Exagerara um pouco no vinho. A dor de cabeça estava lhe consumindo a alma. O pensar já vagueava longe, distraído da conversa que tanto empolgava o marido. Ah, o marido...
-Lembra-se, querida, quando estivemos na Europa? Não suportávamos o frio!
Seu olhar distante denunciava seu total desinteresse pela conversa à mesa.
-Querida?!
Aquela voz arrastada que insistia em lhe acordar todas as manhãs com um “Bom Dia” já lhe soava tão falsamente natural. Como não suportava mais ser acordada àquela maneira. Como a irritava o jeito lento e atrasado de falar de Carlos. Como não suportava mais Carlos...
-Com licença, vou ao toalete!
-Te acompanho, Renata. Preciso retocar a maquiagem. –Arriscou Vânia, numa tentativa de ficar a sós com a amiga e lhe interrogar o que a afligia.
-Preciso ir só, Vânia. Já me basta a falta de espaço dessa mesa.
Todos que conversavam empolgadamente calaram-se, como que obedecendo a uma ordem silenciosa. Mesmo Carlos, que sorria enquanto tentava disfarçar a distância com que sua mulher o tratara, cala-se esperando o desfecho da atitude de Renata. Há algum tempo sentia-a infeliz, introspectiva.
“Deve ser a menor-pausa.” Consola-se. Sendo ou não, o fato é que sua mulher não era mais a mesma. E aquele jantar era apenas uma tentativa de animá-la um pouco. Mas o vinho fora seu único companheiro durante toda a angustiante noite. Todos à mesa sentiam o ar carregado, denso. O tempo teimava em arrastar-se e Renata só era notada quando erguia o braço ao garçom, exigindo -aos berros- mais bebida. Ou mesmo quando, entre resmungos, enigmaticamente falava pra si mesma que estaria desapontando sua filha. Mas que filha? O maior lamento de Carlos era ser estéreo. Filhos era apenas um sonho distante. Adotá-los não. Filho tem de ser de sangue. Esses os únicos dignos de herdarem a fortuna que conquistara com tanto suor e trabalho. E deveria ser com Renata. Ela era a mulher ideal. A criança herdaria sua sensibilidade e altivez. Quem sabe até seria inteligente como a mãe. Dele bastava apenas que herdasse... Bom, bastava apenas amá-lo. Já era o suficiente.
Mas e por que agora essa atitude de Renata? Que filha, meu Deus?
No espelho do toalete, Renata via a maquiagem desmanchar-se em pretas lágrimas. E essa angústia que lhe consumia toda a alma, toda a existência?
-Meus Deus, e minha filha, o que será dela?
E soluçava como uma criança que acabara de sofrer um corte.
Carlos achou por bem ir embora. O vexame já daria o que falar a semana inteira.
Não falaram nada no carro enquanto retornavam a sua casa. Ela fazia-se de sonolenta, mas só ela e Deus sabiam o quanto estava agitada por dentro... E sua filha... Então um sorriso é esboçado quase que naturalmente, como se viesse de dentro o impulso de simplesmente sorrir.
Quando deitados, Carlos virara-se para o lado. Era preferível fingir dormir a ter que ouvir as asneiras de uma bêbada angustiada. E aquela angústia toda, como se explica? Ela levanta para ir ao banheiro. Olha-se no espelho. Não aceita que, num momento de fraqueza, pudera ter cedido à latência da carne que lhe suplicara outro homem. Justo Sabino, o chefe de Carlos. Maldito dia em que ele o procurara em sua casa. E o seu homem tinha justamente que ter ido ao bar com os amigos? Pior era esse homem à sua frente que inspirava virilidade, que exalava selvageria. Como uma leviana, entregara-se aos prazeres da carne. Ele que se insinuava tantas fossem as vezes que ela precisasse ir ao escritório do marido para uma passagem ligeira. Nunca na frente de Carlos, ao menos nisso era discreto. Fora apenas uma vez.
-Uma vez, meu Deus? E como? Não é justo!
Bem que fora prazeroso. Jamais o seu homem, fora tão incisivo, tão viril. Nem mesmo quando se entregaram um ao outro da primeira vez. E o incômodo que não vinha? Dois meses e 3 dias.
Num acesso de fúria e inconseqüência esmurra a barriga como quem está disposta a matar de tanto bater. E era isso que intentava. Matar a filha. Tinha certeza que era uma menina. Sempre fora seu sonho. Sempre sonhara em poder vê-la crescer. E casara-se justo com um homem que nem ao menos orgulha sua espécie. Nem ao menos pode perpetuar-se.
E os murros são cada vez mais violentos. Fora preciso morder uma toalha para abafar os gemidos de dor. A essa altura Carlos dormia. E ela sofria no banheiro.
Ela então, desmaiada, fora acordada por Carlos, que a deitara na banheira sem água.
As lágrimas do marido escorriam concomitantemente com o sangue que escorria nas pernas de Renata, acrescida de uma intensa dor que lhe comprimia o ventre. E, na banheira sem água, pôde ver os resquícios de um sonho esvair-se com o sangue que descia pelo ralo.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Sento na poltrona e coloco meu disco do Chico.O que me leva à esse fluxo de consciência(aprendi na aula de literatura)? A insônia?A solidão?Não sei,mas ela vem impetuosa e forte.
Porque no é legada essa maldição de pensar,de refletir?Mas é inevitável, olho para trás da minha vida,para trás de mim,para fora de mim.E o que vejo?A minha antiga máscara, que máscara todos nós usamos, sem entender o motivo,já que seremos reduzidos a mesma matéria inútil e sem sentido.Não fiz nada,não modifiquei minha vida nem marquei a dos outros."Não transmiti à ninguém o legado de nossa miséria".
Ah!Esses malditos pensamentos!Amantes da minha dor, por favor não quero saber quem eu sou!Vou tomar um chá,Talvez consiga dormir, em uma sensação de morte respirada.Se os problemas fossem resolvidos com chá...Um chá para gauchismo,pediria Carlos.Carlos, tantas coisas vistes, outras tantas te foram negadas, negadas à nós, simples seres da terra.Mas o que seriamos sem as coisas negadas?
O cansaço me pega pela mão e vai tomando conta do meu corpo.Minhas pálpebras pesam e entro em um sono profundo.Sono.Profundo

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

pescadores

mãos as quantas, nem sei
desfiz-me surpreso
mãos
que apertam (surdas)
o peito, que ofuscam
nutrem-se dos ardores
mãos
ocas, que só passeiam
percorrem, oco do mundo
incontáveis
inconstância
ânsia, sentí
sentí calor, suor
um tão pecaminoso pavor:
amor!,
dias então
esses dias nossos tão iguais...

David Olivera

O último momento de Maria Bete


O semblante denunciou, naquela tarde, o incômodo que sentia Maria Bete com o assento do condução. Ela devia só não gostar do amassado que ficava no seu vestido xadrez de linho, pois era fácil perceber que a lotação e a falta de educação dos passageiros não a incomodavam. Era somente o amassado que a importunava.

Maria Bete era uma senhorinha que sempre estava no mesmo ônibus que me levava ao trabalho pela manhã. Sempre bem vestida e perfumada, carregava consigo uma bíblia e um óculos escuro de armação retangular rajada a olho-de-tigre que, quase sempre, usava como tiara para impedir que os cabelos alvos, cacheados e de aspecto vaporoso caíssem sobre a testa enrugada. Era, acima de tudo, elegante.

Todos os dias eu a via sentada no mesmo lugar, ficava a recitar passagens bíblicas ou a cantar canções tristonhas que eram, para mim, um agouro de mau presságio – mas nada de ruim havia acontecido ainda. Era difícil chegar perto de onde ela estava, as pessoas bloqueavam a passagem e eu me contentava em vê-la furtivamente, assim como quem rouba mesmo.

Não sei, na verdade, explicar por que tornei a observá-la. Aconteceu de forma involuntária e periódica. Eu, quando não a via preenchendo a cadeira de costume, sentia-me incomodado pela falta. Meu dia não ia bem e eu pensava no possível encontro de amanhã.

Os dias seguiam e eu ainda, com esmero, a observar aquela senhora que, do longe, despertava-me para o perto. Foi quando, com ônibus vago, consegui, com muita cautela, aproximar-me dela. Nada muito perto, mas também não muito longe. Fiquei próximo o bastante para entender a letra da canção que cantava enfadonhamente. Eu acompanhava o ritmo ditado pela sua voz aveludada quando esse é cessado por uma fala abrupta:

- Senhor quer que eu segure?

Era a primeira vez que eu escutava sua voz natural. O senhor deu as sacolas e ela as encobriu com o corpo cuidadosamente. Cinco minutos depois, ela pediu a bolsa de uma moça que não hesitou em aceitar – apesar de mulheres não entregarem suas bolsas facilmente. Foi fácil perceber que Maria Bete era daqueles passageiros de condução que pediam para segurar tudo que estava por perto e as pessoas, daqueles que não recusavam.

Ela não pediu para segurar minha pasta naquele dia, mas acho que eu não daria. Responderia apaticamente com um sorriso de meia boca: "Não, obrigado". Talvez por desconcerto ou por vaidade. Nem sei.

Noutro dia, mesmo com o ônibus lotado, me aproximei de onde ela estava. A distância era a mesma da do outro dia, eu só queria ouvir o que ela cantava. Uma marchinha de carnaval desafinada! O estranhamento não foi pouco. Não era de costume uma música alegre ser cantada por Maria Bete, não a que eu conhecia. Aproximei-me ainda mais, de modo que pude ver seu rosto melhor, não de um olhar furtivo, mas de um direto, intimidador. Senti que ela notou minha presença.

- Ei, deixe eu segurar sua pasta.

- Claro, muito obrigado.

Não consegui recusar. Entreguei minha pasta de trabalho de couro com uma grande fivela prata com as iniciais de meu nome, um mimo de mamãe, a ela que a deitou em suas coxas acomodando minha bagagem juntamente com a de outros passageiros.

Fiquei, por um vão momento, em alerta e sem nenhuma atitude. Que atitude eu deveria ter? A de um inexpressivo passageiro de ônibus. Mas não era fácil. Eu dirigia, de forma quase involuntária, o olhar para os lábios daquela senhora que gesticulavam aquela melodia com maestria, eu não queria beijá-la, apenas acho que não.

Naquele instante, Maria Bete começou a cantar mais freneticamente a marchinha de carnaval com uma empolgação falsa, ninguém estranhava aquilo, mas eu ficava cada vez mais aflito.

Estava me controlando para não interromper sua canção e perguntar por que não cantava as de costume, mas me controlei: olhei para o teto e tentei não ouvir o que cantava cantarolando mentalmente outra música.

- Ei, senhora, o que é que tá fazendo? Uma mulher perguntou para Maria Bete num tom inconformado.

- Ela está abrindo suas coisas. O senhor sentado ao lado alardeou para todos do ônibus como quem grita "pega ladrão".

De fato, Maria Bete tinha violado a bolsa da moça e já estava com a metade do braço esguio, balançando e sentindo o que havia na bagagem, enquanto os passageiros, inclusive eu, iam ficando indignados com a atitude daquela senhora.

- Senhora, me devolva minhas coisa.

- Pois não, minha filha, pegue. Disse atordoada já fechando e arrumando a bagagem da moça que retomou suas coisas e deslocou-se dali.

As outras pessoas que tinham coisas nas mãos de Maria Bete pediram suas bagagens e afastaram-se dela impressionadas deixando-a sussurrar "por nada" para ninguém, exceto para mim que permaneci como antes impressionado com tudo aquilo.

O percurso longe não findava. Curvas iam e vinham e o subúrbio aparecia e sumia pelas janelas do ônibus, freios e pessoas figuravam em cena com freqüência nauseante.

Uma algazarra mais atrás se formava e os que estavam à frente, incluindo eu, não entendiam bem o que acontecia até que um rapaz moreno com o uniforme de um supermercado falou:

- É um assalto!

E era mesmo. Num instante, três homens armados e munidos de grandes sacolas empurraram a todos e golpearam alguns retirando os seus pertences.

- Continua andando, motorista, se não a gente atira aqui!

Desespero e lástima já haviam sido emanados, quando um dos três já com a sacola cheia de bolsas, celulares, relógios e outros objetos afastou-me para o lado e referiu-se a Maria Bete:

- Anda, senhora, passa essa pasta!

- Meu filho, isso não é seu nem meu. O que você quer com isso?

- Anda, senhora. Quer que eu atire?

Não entendia nada. Aquela senhora que, a pouco tempo, estava com o braço dentro da bolsa de uma moça dizia aquilo para um assaltante armado. Eu, sem ação, disse para entregar, as pessoas do condução reforçavam a mensagem, mas Maria Bete olhava a pasta e a arma do assaltante e parecia entorpecida. Ninguém acreditava naquilo. Eu me perguntava o que aconteceria.

Um dos outros dois, já próximo a porta de descida do ônibus, anunciou:

- Quem não facilitar vai levar chumbo aí, to avisando.

O clima de tensão aumentou. Maria Bete parecia não participar da cena dramática. Eu reforcei:

- Senhora, dê minha pasta a ele, não há nada de importante aí. Nada que eu não possa dar um jeito. Vamos, dê logo, antes que algo de ruim aconteça.

Ela olhou para mim sem entender e continuou imóvel. Tentei puxar minha pasta de volta, mas ela fez força, estava sentada e eu em pé num ônibus em movimento. Ela protegia minha pasta.

Olhei para o assaltante que nos tinha abordado.

- Vamo logo, Erivaldo!

Ele retribuiu o olhar e, em seguida, fechou os olhos com força e atirou. O som do disparo calou muitos outros sons, vozes, gritos, soluços. Todos, atônitos, acompanharam com o olhar os três assaltantes saírem apressados com as sacolas empanturradas, sem levar minha pasta ensangüentada com o sangue de Maria Bete que inevitavelmente estava morta.

- Que cagada que você fez. Gritou furioso um dos assaltes já entrando num carro que devia estar nos acompanhando para dar suporte a esses três.

O motorista estacionou o ônibus e fez as ligações necessárias. Abalados com o acontecido, os passageiros tiveram reações similares, choraram, gritaram, injuriaram. Alguns sentaram na calçada e esperaram outro ônibus, uns saíram a pé sem rumo aparente. Eu fiquei por ali, olhei, com ânsias de vômito, o rosto de Maria Bete e o furo encima da orelha, de onde escorria ainda sangue que tingia seu cabelo alvo.

- Obrigado, Maria Bete.

Dei-lhe esse nome naquele momento, sempre a achei parecida com ele e como não tive oportunidade de descobrir o seu verdadeiro ficou assim mesmo.

Tomei o ônibus junto com os outros passageiros e, logo, cheguei em casa.

Estranhamente nunca mais ouvi falar nesse episódio. Os noticiários locais devem ter ecoado o ocorrido, mas eu não vi. Nem mesmo me procuraram para depor. Os passageiros que presenciaram e que continuavam no ônibus preferiam também não tocar no assunto.

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Tresvario Inicial


Há quem se pergunte onde vive a imaginação do poeta.
Há quem se pergunte o porquê de tantas idéias incertas.
Há quem não entenda as palavras mais sinceras.
Há quem acredite que frases não passam de pensamentos que facilmente se apagam no tempo.
No entanto há também quem saiba fazer a diferença. Quem perceba o quão forte e iminente é o poder da mente.
Há quem veja além da primeira impressão. Quem encontre, ao observar o nascer do sol, o motivo da nossa existência e que saiba que o segredo da vida está além da ciência.
São essas pessoas que encontram o segredo da sabedoria, que encontram a melhor forma de viajar nas asas da teoria.
São essas pessoas que entendem que as palavras certas são ditas quando menos se espera, pois é no exercício das idéias que se encontram as fantasias mais eternas.
Portanto, modéstia à parte, nós, os “tresvariantes”, somos, ou tentamos ser, esse tipo de pessoa. Se você deseja viajar conosco nesse mundo de idéias e imaginação, pode vir! Aqui não nasce apenas o Tresvario em Prosa e Poesia, e sim, um espaço para a criatividade de pessoas com mente aberta para esse mundo de idéias...



Jéssica Welma



####
Texto adaptado para o blog Tresvarios em Prosa e Poesia.