quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

A Bicicleta Universitária

O chão estava numa tonalidade arroxeada que se confundia com vermelho. Os alunos pisavam sem nem sentir o que aquela cor lhes trazia, ficavam embaixo do jambeiro, responsável pela mudança periódica de coloração, a conversar o que só eles entendiam, fazendo com que os outros alunos os taxassem de pedantes ou outras coisas do gênero. Mas não era nada disso.

Robaldo era um dos alunos do curso de Física daquela universidade, os que ficavam embaixo do jambeiro, e era ciente do que pensavam os outros alunos. Ele sabia pelas expressões faciais que via e pelas meias palavras que escutava, era esperto, vaidoso e não queria ter sua imagem distorcida. Mas o que fazer?

O campus amplo e arborizado comportava centenas de alunos. Muitas salas, tantas que era fácil deparar-se com uma nova todo dia. Essa disposição agrupava naturalmente os alunos por curso, uma vez que cada departamento era um pouco longe um do outro. Todos compartilhavam somente a área de lazer e alimentação, um enorme pátio com mesas e cadeiras distribuídas aleatoriamente pelo espaço, com quiosques e com o jambeiro, aquele jambeiro onde se encontravam sempre os alunos de Física da turma de Robaldo:

- Já pararam para pensar o que essas pessoas pensam da gente? Indagou Robaldo.

- Que somos doidos, respondeu Jorge sem emoção.

- Deve ser, finalizou Robaldo quase num sussurro.

O restante ouviu o questionamento do colega, mas não esboçou reação nenhuma, para eles não era um ponto conflitante, mas para Robaldo...

Foi para casa com aquilo em mente. Não era ele um louco. Por que aquelas pessoas poderiam pensar isso? Não fazia idéia. Decidiu se esforçar para saber e, se a confissão do amigo vingasse, para desfazer essa impressão. Não sabia como, mas tinha disposição para isso.

No outro dia, vigilante, ficava esperando algum comentário alheio a cerca dele e de seus colegas. Nada ainda, imaginava que não ia demorar muito. Até que a conversa desinteressada de dois rapazes chegou aos ouvidos de Robaldo.

- Esse povo da Física não tem juízo não, é tudo doido. Bradou um.

- É, né? Perguntou num tom dúbio de concordância o outro.

- Eu nem me espanto mais...

- Por quê? Sem hesitar, interrompeu Robaldo.

- Como? Perguntaram os dois de forma atordoada.

- Por que você acha isso?

- Você é da Física, né? Tá vendo, tudo doido, afirmou e continuou andando com o amigo. Mais ao longe riram prolongadamente.

Robaldo não suportava ver a confirmação do que dissera o amigo. Então é verdade! O episódio não o incentivou a aproximar-se de outras pessoas, já não era mais uma hipótese.

Duas semanas se passaram e ninguém sabia nada de Robaldo, incomunicável, ausente. Seu paradeiro, uma incógnita. Até que Jorge e os amigos, no local de costume, embaixo do jambeiro, viram uma pessoa aproximar-se com uma bicicleta e notaram algo familiar:

- Robaldo, é você? Questionou um de seus amigos

- Sim. Eu estou tão mudado assim?

- Tá, cara, disse assustado Jorge. O que houve? Faz uma semana que ninguém te vê. Por onde você andava?

- Por aí, é que eu sou louco mesmo. Olhem, deixe-me apresentar, a Marie, minha bicicleta.

O cabelo ao vento, a barba mal feita e as roupas frouxas e desbotadas não inspiraram confiança, todos faziam caras que só aumentaram com a recepção da bicicleta.

- Oi, Marie. Em homenagem à Marie Curie?

- Sim, sim. Confirmou Robaldo. Eu vim, na verdade, pegar umas assinaturas para pôr nessa bandeira, tirou da bolsa de viagem que carregava um pedaço de pano médio e balançou no ar para que todos pudessem ver. Eu vou seguir uma jornada com a Marie, em nome da Física.

- Que jornada?

- Um percurso equivalente ao comprimento da linha do equador, mais de quarenta mil quilômetros. Eu me resignei pra isso, não se preocupem, só assinem que eu ainda vou colher assinaturas de outras pessoas também.

Não havia muito que dizer. Apesar de ser uma idéia difícil de dar crédito, ele parecia saber o que fazia. Rapidamente, a bandeira mudou do branco para a cor das várias assinaturas das pessoas da universidade, que estavam todas reunidas, assistindo a cena.

Robaldo hasteou a bandeira na bicicleta, saiu pedalando e já contabilizando os quilômetros. Era fácil ouvir "Que maluco", "Palhaçada" ou, até mesmo, "Deus abençoe".

- Ele conseguiu o que não queria: ser taxado como louco. Lamentou Jorge no final do alvoroço.

As dores vieram rapidamente, assim como o arrependimento. Que idéia! Ele não tinha os requisitos para aquilo: pedalar e pedalar e pedalar. Numa rodovia de caminhoneiros, não muito longe da cidade, Robaldo percebera que sua idéia não faria Arquimedes abandonar seu banho e sair gritando "Eureka" despido por aí. Era uma decepção. Achava que podia fazer aquilo para se reinventar e conseguir a admiração de alguns, mas estava longe disso, será que não percebia?

Percebeu na hora em que estava controlando o guidão da bicicleta com a bandeira, cansado, sujo, desejoso de estar em casa. As pessoas perguntavam:

- O que é isso rapaz?

Ele pensava... Não sabia a resposta especificamente. "Em nome da Física". Não era isso. Queria responder a outra pergunta: O que te traz aqui? Essa sim ele responderia facilmente, mas como o questionamento era outro, improvisava dizendo asneiras ou fazendo-se de mudo. Até que tirava algum divertimento daquela patacoada. Para diferentes ouvintes enunciava diferentes causas, tudo por puro divertimento, anestesiava-se da grande decepção que fora sua idéia.

A decepção, entretanto, aumentava tanto quanto sua magreza. Precisava fazer outro furo no cinto, as calças caíam. Sentia seu rosto mais ossudo, fazia tempo que não via seu reflexo. Sentia-se envergonhado e humilhado. Pensou na universidade e nas pessoas que o consideravam louco, na família distante, pensou na vida.

Com nem um quarto do percurso proposto concluído, ele largou a bicicleta e sentou-se no meio-fio. As lágrimas facilmente caíram e secaram. Ficou irado, rasgou a bandeira e com um pedaço de ferro que encontrou perdido na mata rasteira daquela rodovia golpeou a bicicleta, ou como denominara: a Marie Curie. Não tinha saciado nada com o ato, até se entristecera mais.

Cansado, começou a andar numa direção. Tinha a estranha sensação de que não andava, o asfalto é que empurrava seus pés, assim, ia adiante. Que espécie de experiência foi essa? Iria para casa na primeira oportunidade que aparecesse. O braço erguido e o polegar sinalizavam o pedido de carona que muitos ignoravam, não era costume dar caronas. Tinha um resto de comida e uma barraca na mochila, dava para passar a noite ali na companhia do medo, da solidão e do remorso. Faltava localizar um lugar adequado.

Ainda sinalizando carona, continuou andando até que avistou o lugar perfeito. Uma pungida alegria o contaminou, dando forças para que ele corresse e chegasse ao local que julgava apropriado. Sentou ofegante e sentiu-se revitalizado e com a coisa certa a fazer em mente.

Deitou na folhagem de tonalidade arroxeada que se confundia com vermelho e avistou a copa de cor verde com pontos vermelhos, a copa do jambeiro. Armou a barraca, comeu e dormiu. Já sabia o que fazer.


3 comentários:

  1. "A loucura é uma questão de ponto de vista"
    Augusto Cury(escritor e psiquiatra):P

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  2. Olha só quem está mostrando a (até então oculta) veia literária... (:
    Muito bom, Josué.

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