segunda-feira, 30 de março de 2009


Já parou para pensar no que é sofrimento? Também nunca tinha pensado até vê-la.Era jovem,porém o sofrimento a tinha envelhecido.Estava com uma criança no colo,tentando ser atendida no hospital.Sentei-me ao seu lado e em dez minutos ela me contou toda sua vida e como havia passado por dificuldades.Mas calma,não são as dificuldades pelas quais ela passou que são a causas de seu sofrimento.Ela vive,por isso sofre.Viver,muitas vezes exige não ser.Exige ver,sentir.Isso causa dor e vício.Você não se pertence mais.Se sufoca,mas não grita.O fato de guardar um segredo,por assim dizer,pois assim que é de seu conhecimento deixa de ser segredo e passa a ser fato,concreto ou abstrato é algo que causa um prazer indizível,que o egoísmo humano não permite dividir.E você vive a ilusão de buscar ou guardar esse segredo.Mas um dia acorda e vê que não há mais segredo,porém já é tarde e só resta esperar.Enquanto isso,ela perde o que tem,até não lhe restar nenhuma razão ou circustância.Só a verdade do ser,que não passa de ilusão,já que a verdade também não existe,só a relatividade,única coisa concreta em que se pode confiar.O resto é obra ou produto,depende do que ou em quem você acredita.Por isso sigo tentando acreditar na felicidade,tentando encontrar um meio de não me machucar,nem machucar os outros com a suposta ilusão da verdade.E ,quando alguém descobrir o sentido disso tudo,da vida,do sofrimento,da felicidade,nada mais valerá o que foi.

sábado, 28 de março de 2009

a filha de gil

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O grito fez desaparecer as imagens do que parecia ser o sono intranquilo da mulher, que só teve tempo de encontrar a toalha e correr ao quarto da filha. Os corredores escuros da casa envolviam a mulher que logo fez-se mulher na eterna madrugada das vontades - tantos gritos ouvíamos -, becos que escondem dos curiosos visitantes o interior, o desaconchegante interior da família. E trancam-se... Ela ouve o grito e acorda. O grito passeia pela mulher, chega ao banheiro onde dorme um corpo de pele enrugada e ainda só, ainda assim. Faz-se ouvir.

No quarto da menina alguém escapa pela janela e larga na pequena cama em formato de coração um punhal, lápis dos muros da menina. A menina corre para a mãe, abraça a mãe, chora.

- Ele?

Gil apanhou o punhal e seguiu pela estrada.

Chegou pelos fundos da casa e foi com terror que viu o homem no quintal, despido em carne ainda morta, desenho que virtua-se em espiral. Ele, ancorado numa árvore, masturbava-se. Ela empunhou a faca e avançou alguns passos, o rosto paralizado como que em transe: "para com isso", e ele chorava, pedia perdão, perdia tempo, o corpo suado que se movimentava lentamente pelo espaço, que umedecia com a ponta da língua os lábios sempre secos, que acariciava o peito. O rosto da menina aparecia no turbilhão das imagens e perfumes, sempre sozinha, delicada e sozinha no escuro beco que de noite era só silêncio... "Para!"

- Escuta Gil, eu não fiz nada com ela.

- Para!

- Eu te amo Gil!

A cólera tomou a mulher, porque esta correu até ele e enfiou-lhe a faca no peito, perfurando-o várias vezes, sentindo o gosto do sangue, e rindo até!, e enfiando a outra mão nos cortes que fazia, procurando, talvez, por algo - são abismos aqui? Desfigurou-lhe todo o corpo, cansou.

Jogou a faca para longe e se preparava para ir. Foi quando olhou para trás e viu que o pênis permanecia ereto. Ajoelhou-se ao lado do corpo e o pôs em sua boca. Chupou-o violentamente, até que o homem gritou.



David Oliveira

domingo, 8 de março de 2009

Bom dia

Ela estava à minha frente. Andava com graça, me chamou a atenção. Não estava demais exuberante, era um dia comum e o seu vestuário estava tal como aquele dia: comum.

A visão que eu tinha não era das melhores, eu a via de costas andando majestosamente, o longo cabelo, amarrado num apertado rabo-de-cavalo, dançava e me hipnotizava. Eu até podia sentir seu perfume, não lembro a fragrância, mas posso dizer que me atrai bastante.

A avenida estava sendo reformada, uma obra da prefeitura. A poeira era muita, o barulho também. Eu conhecia aquele trecho. Pegava-o todo dia, nunca a vi por ali. Quem era? Para onde ia?

Minhas passadas eram rápidas, certamente, ia ultrapassá-la tal qual um caminhoneiro numa BR, mas me contive, eu podia apreciá-la mais um pouco, então, o fiz. Retardei ao máximo meus passos a fim de segui-la, como uma sombra. Meu Deus, ela nem tinha idéia do que se passava ali, os ruídos da construção eram intensos demais e a impediam de sentir minha presença, apesar de eu estar consumindo a sua como uma droga que se inala. Eu pretendia ter uma overdose.

Eu pensava na investida. Um despretensioso 'bom-dia' seguido com uma conversa desinteressada poderia valer se ela conseguisse me ouvir com toda aquela barulheira. Mais ao longe talvez ela consiga, pois a obra era localizada apenas naquele trecho. Eu enrolaria mais um pouco até dar o pulo do gato.

Ela olhou o relógio e apressou o andado. Estava atrasada? O rabo-de-cavalo balançava mais intensamente.

Minha hora estava próxima.

Assim que o barulho aparentou estar distante, cortei a diagonal, e quando pude perceber ela estava quase ao meu lado. Ouvi uma canção entoada pelos seus lábios, que só então agora eu pude ver, finos. 'Meu mundo caiu'. Ela estava cantando, cantando divinamente. Percebeu que podia estar sendo ouvida e cerrou os lábios severamente. Por quê? Estava tão bem! Percebeu minha incômoda presença e parou. Olhou pra mim e parou, não consegui evitar, fiquei fitando-a por uns minutos.

- Bom dia, ela disse envergonhada, constrangida, parecendo querer consertar algo.

- Bom dia, respondi em seguida, tranqüilizando-a.

Com os nossos 'bom-dias' queríamos dizer muito mais. Ela, talvez, sentia-se nua, provavelmente, aproveitou o barulho ensurdecedor da construção na avenida para soltar a voz, coisa que aparentava fazer às escondidas. Eu, como já se sabe, queria-a para mim.

Consegui ouvir sua voz por poucos segundos, mas foi o bastante. Possivelmente por causas televisivas, cantava aquela música tristonha que me lembrava minha tia-avó. Mesmo assim, me encantei por ela, pelo seu rabo-de-cavalo dançante e pelo seu canto furtivo.

Fiquei ao seu lado, a qualquer momento podia iniciar minha conversa desinteressada, mas não o fiz. Estava assustado com sua presença. Olhava-a de soslaio, percebendo seus olhos, sua boca, suas mãos, suas pernas, seu busto, seu corpo como um todo. Fiquei por isso mesmo, decidi arriscar no amanhã. Ela dobrou numa esquina, disse 'tchau' e se foi. Com sorte, talvez, nos víamos depois.