domingo, 15 de fevereiro de 2009

fevereiromarço

- Marinheiros, volver! Volver! Voltem desgraçados, fugir pra onde? Quem, eu? Não!, tô falando deles: olha lá o bando de desertores! Não fazem idéia dos tormentos e perseguições que os esperam porque lá fora os homem nos odeiam, é perigoso, sabe? E eles vão indo sempre, não importa o que eu diga! Volver! Ei! Por que ninguém mais me escuta? Por que ninguém mais me respeita? Por acaso sou anêmico... alérgico... anencéfalo? Não, não sou porque se eu fosse tu não sorriria mais, eu arrancaria teus dentes só pra não ter mais o que mostrar. Eu gritaria: Que bela carranca, meu caro!, Que bela carranca!... O teu sorriso não sobrevive sem esse dentes. Ai, e que bota apertada essa minha, dê-me licença para sentar-me aqui e tirá-la. Pra mim não existe preocupação maior que meus pés, se eles sofrem é porque o mundo desmorona; e olhe em volta, que tristeza esse lugar. Uma miséria, se eu for eleito passo o trator por cima, seria antes um favor. Mas me diga uma coisa, viu passar por aqui uns tipos suspeitos? Gente mais ou menos delinquente? Ah!, muito obrigado. Vou indo, foi um prazer revê-lo. Mande um abraço a seu pai.

- Meu pai morreu. Minha mãe e minha prima morreram. Morreram vizinhos, cabras, bezerros, galinhas. Morreu a família toda.

- Ao menos o senhor sobrou.

- Quem sabe?

- O carteiro deve saber. Dizem que essa gente sabe de tudo. Quer cartas?

- Não, pra mim basta isso aqui.

- É humilde, que pena. Não suporto pessoas assim, são traiçoeiras e contaminam o meu ar. Ouví falar de um que ofereceu a casa a pobres viajantes que vinham de longe, lá de Juazeiro. Eram dois rapazes e uma moça, aqui a foto deles. Pois bateram na porta desse tal humilde e entraram. E era até um homem respeitado no lugar, apesar de ser metido com poesia. Que crueldade fez esse homem, matou todos com golpes de enxada porque um dos miseráveis ousou falar bem dos modernistas, o homem odiava os modernistas! Tem gente pra tudo. O senhor não quer que eu durma aqui, quer?

- Não.

- Que bom. Vamos, dê-me a foto. Não vim até aqui pra passeios como o senhor deve estar pensando, não, procuro uns desertores, gente violenta que anda fardada... Meu Deus, que juventude é essa que não respeita mais uma farda? O que me espanta é essa sua indiferença, acorde homem! Eles são perigosos, fugiram das jaulas para cometer crimes e se pegam você, matam! Matam, está me ouvindo?! E eu não vou estar aqui para salvá-lo, a minha aposentadoria deve sair no final do mês. Trabalho duro desde cedo, mereço descansar. Estarei tomando cerveja na beira de uma praia enquanto você é estrangulado, velho miserável! Dê-me um sinal, aponte pra quais lados eles foram, aqui a foto deles. Vamos, diga-me logo antes que... Eles foram pra lá? Obrigado, agradeço pela ajuda e pela conversa mas tenho que ir, anoitece rápido neste fim de mundo. Ora, o senhor pegou minhas botas? Estranho, tenho quase certeza de que não vim até aqui descalço. Bom, meus pés agradecem, olha como são limpos e delicados, diferentes dos seus. O senhor tem um pé muito feio, desculpe-me. Mas como aguenta viver aqui? Nunca pensou em fugir? É que é só nisso que penso, fugir. Nunca conseguí ir tão longe, tinha medo do que eu poderia encontrar, coisa de jovem. E os jovens morrem cedo, não é? As suas marcas dizes que sim. Acho que me perdí, sinto-me confuso... Não quero nunca mais ver o seu rosto, esse rosto comum, rosto de bêbado, de açougueiro, rosto de carteiro. Quer cartas?

- Não.

- Que pena. Que pena. E chá, tem?

- Sim.

- Vá buscar. Lembrei de um amigo que sumiu só pra não ter que ir ao dentista. Sumiu pra sempre... O senhor mora aqui há muito tempo? Uns trinta anos?

- Desde de que nascí.

- Uns trinta anos?

- Sessenta

- Sei. Deve ter sido uma vida dura. Vou contar-lhe uma piada para animá-lo. "Certa vez um repórter perguntou a um escritor, desses mais novos, o que ele tinha a dizer diante das críticas que o seu último livro andava recebendo. O jovem respondeu: 'não sei, eu também não lí o livro'."

- Não teve graça.

- Vai ver não teve mesmo. Ora, as botas voltaram! Agora vou ter que calçá-las, que vida essa minha! Obrigado pelo chá, estava ótimo. Foi você mesmo quem fez? É que a gente aprende a desconfiar a essa altura da vida e vai conversando até se esquecer do tempo. Tenho meus afazeres, não sou um desoculpado. O problema é que é bom demais falar, escrever também mas escrever às vezes cansa. Vou indo, quando passar pela cidade faça o favor de me visitar, ficarei agradecido. É sempre bom receber os amigos, falar da juventude, de coisas velhas. Preciso conversar com alguém nos sábados. E esses dias que se parecem tanto com os outros... Meu Deus, vivemos em tempos difíceis. Mas tenho que ir, é fevereiro ou não?

- Talvez.

- Diga-me, como acabou o seu velho pai?

- Morreu.

- Então a peste também chegou por aqui. Tempos difíceis... Ora essa!, eu já ia embora sem entregar-lhe esse telegrama, chegou hoje pela manhã e aqui está, acho que é de algum parente seu que teimou em não morrer.

- Todos morreram.

- Vamos, homem. Abre logo que eu quero ver.

- Não, agora não. Mais tarde.

- Tudo bem, eu espero. Eu espero.


David Oliveira

Nenhum comentário:

Postar um comentário